"E novamente, ele [Zeus] amou Mnemósine (Memória) do cabelo bonito: e Dela as nove Musas coroadas em ouro que se deleitam nas festas e nos prazeres do canto nasceram."
Hesíodo, Teogonia
Pra quem ainda não As conhece, as Musas são Deusas Gregas que presidem sobre as Artes e Ciências de modo geral. São Elas que trazem a inspiração aos artistas e dão intuição aos cientistas sobre as mais diversas teorias, possibilitando, assim, o avanço da humanidade. Elas foram criadas para que cantassem, celebrassem e imortalizassem os feitos dos Deuses pela eternidade.
Eu decidi escrever brevemente sobre Elas, não uma mitografia, mas um pouco sobre o papel que Elas têm na História. Estudando sobre a história antiga do mundo grego me deparei com a teoria de que a narração de histórias inicialmente visa imortalizar feitos importantes de um indivíduo ou povo. Nesse âmbito, comecei a traçar vários paralelos entre as deidades e mitos com o que estou aprendendo e as Musas sempre me vêm à cabeça, pois a função Delas é basicamente essa.
Como divindades detentoras de todos os saberes, Elas cantam sobre o passado, presente e futuro e, por isso, possuem poder profético. Mas, ainda mais do que isso, Elas conhecem os segredos do tempo e de tudo o que já aconteceu, sendo por isso que são responsáveis por contar/cantar os feitos para a posteridade. Elas se valem de várias formas de expressão para, de forma empática, cativar o leitor, mexendo com o imaginário e evocando sentimentos comuns ao mesmo. Com essa habilidade, Elas prendem a atenção e estimulam o interesse.
No livro “Entre o Passado e o Futuro”, de Hannah Arendt, é dito que a história é anterior à escrita e aos historiadores e tem como mote elevar um indivíduo/fato ao estado da imortalidade. Imortalidade essa não no sentido apoteótico, mas no sentido de manter vivo na memória os fatos ocorridos durante as Eras. Para isso, um fato deveria necessariamente extrapolar o ordinário, pois apenas assim seriam dignos de nota e poderiam inspirar gerações para servir de lição e estímulo à ação. O interessante é que esses pontos que Arendt cita é basicamente a função das Musas.
Como é sabido, os primeiros historiadores que se tem notícia surgiram no seio da sociedade grega e cultuavam e admiravam essas deidades de tal modo que alguns filósofos alegam que sua fama e poder de eloquência vieram diretamente quando ouviram o chamado das Musas. Hesíodo é um exemplo disso. Os gregos, assim como todos os povos, tinham em seus mitos a resposta para várias de suas crenças e costumes. Os mitos explicam porque pensam de forma X, porque realizavam seus ritos de forma Y, porque a sociedade era estruturada de forma Z, etc. Sendo assim, quando se diz que as Musas, responsáveis por contar os feitos dos Deuses, são filhas de Mnemósine, é o mesmo que dizer que as Artes e a Ciência é o meio de resgatarmos em nossa memória fatos/cenas acontecidos para com elas não nos esquecermos de coisas importantes que por sua relevância podem nos ensinar algo.
As Musas, para os gregos, não são apenas divindades, mas o próprio saber, o puro conhecimento e, por isso mesmo, o próprio conceito abstrato de Arte e Ciência. Dentro dessa teoria, eu me pego no meio de uma disputa de Titãs onde de um lado temos historiadores que afirmam que a História é uma ciência e do outro, historiadores que afirmam ser Arte. Bem, eu sou pagão e entendo a História como sendo uma Musa. HAHAHAHAHA. Explico.
Dentre as 25 Musas, temos vários grupos, sendo o mais conhecido o das 9 Musas Canônicas, também conhecido como Mneae (Recordações). Nesse grupo encontramos a Musa Clio, Deusa da História e da Criatividade, também conhecida como “A que Celebra” e “A Proclamadora”. Ela geralmente é representada sentada, com um pergaminho aberto ou com nove livros, coroada de louros (símbolo de vitória e de importância), tendo na mão direita uma trombeta e na esquerda um livro de nome Tucídides (historiador que escreveu uma das obras de historiografia mais importantes de todos os tempos: História da Guerra do Peloponeso). Era dito que foi Ela que introduziu o alfabeto fenício na Grécia e Seu poder alude ao fato de que a História atinge todos os lugares e épocas, além de proporcionar diplomacia entre homens e nações.
Por acaso o objetivo de contarmos histórias é passar uma moral com um fato já acontecido para evitarmos cairmos no mesmo erro duas vezes, como, por exemplo, iniciar uma Guerra. Tucídides, em seu livro, diz que escreveu todos aqueles fatos para que estes nunca mais se repetissem por serem por demais trágicos. E é por isso que um dos símbolos de Clio é a Clepsidra (relógio de água), pois analisando o tempo – aquilo que já passou – a humanidade poderá prosperar em paz e poderá viver em festejos e alegria. Essa é a função de Clio. Essa é a função da História. Pois a História é Clio.
A partir desse ponto, portanto, eu não ouso afirmar que História é Arte ou Ciência, pois as Musas são ambas e, dependendo do ângulo em que se observa, a História também pode ser qualquer uma dessas coisas. Para ser Ciência precisa ter método e produção, mas a História não tem produção. Para ser Arte precisa ser mais filosófica, mas nem sempre a História o é (apesar de poder se valer de tal). Em contrapartida, já ouvi dizer que História seria Literatura. E de novo ficamos num impasse. O que seria, portanto, a História? Bem, ainda tenho um longo caminho de estudo pela frente para me preocupar com isso por agora, no entanto, prefiro definir a História como a Musa que inspira minha vida no momento sem necessariamente ser Ciência, Arte, Literatura ou qualquer outra coisa: a História simplesmente é.
Observe, por exemplo, outras duas Musas Canônicas: Euterpe (Deusa da Poesia Lírica e da Música) e Tália (Deusa da Comédia e da Poesia Pastoral). Uma das formas de se manter viva a história é através de rimas, já que é uma chave para a memorização (sob a influência de Euterpe). Desta forma, as histórias gregas foram escritas, em sua maior parte, em forma de poemas ao invés de prosa, pois eram cantadas e assim relembradas com maior facilidade. Outra forma de se manter viva a história é através do teatro, pois uma cena vista é menos fácil de esquecer do que uma cena visualizada (sob a influência de Tália). Portanto, há várias formas de se contar História não sendo necessariamente uma coisa nem outra.
Numa das representações medievais das Musas, feita por Baldassare Peruzzi, vemos que as Musas dançam com Apolo uma ciranda. Isso é uma alusão ao fato de que mesmo cada Musa tendo uma função específica, a influência de cada uma pode chegar até a outra e, por isso mesmo, classificar o ramo de atuação de alguma Musa como sendo esse ou aquele seria por demais pretencioso. Também é possível interpretar com isso de que a História é cíclica, ao invés de retilínea, conforme ensinado. Não tem início, meio e fim, mas rasgos numa espiral ascendente, pois a História é mais antiga que o próprio Tempo, já que em algumas versões as Musas nasceram antes de Cronos (Deus do Tempo).
Enfim, eu poderia traçar vários outros paralelos aqui, falar de inúmeras outras formas de influência das Musas e a História, mas o que eu quis dizer acho que já deu pra ser entendido. A História é como uma Musa inspiradora para os homens que sabem seu valor. Ela fala ao íntimo, emana paixão, evoca sentimentos, desperta a visão. Para nos mantermos nela podemos mergulhar em ambição, buscar a fama, o poder e a glória, mas se não tivermos uma Musa, apenas seremos mais um na multidão.
Dallan Chantal
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