Chang E, e a desterrada beleza da Lua.
Ao dia 15 de cada mês a do calendário lunar, uma lua límpida e brilhante paira sempre nas alturas celestes da noite transparente. Com uma beleza sentimental e expressiva, ela contempla a terra com uma cara sorridente derramando seus suaves diáfanos fulgores sobre esta. Conforme conta a lenda, nessa lua redonda e luminosa mora a deusa Chang E, a mulher do herói Hou Yi. Mas por que passa a deusa uma vida solitária na lua? A resposta a essa pergunta encontra-se na seguinte e triste história.
Por ordem do imperador celestial, Hou Yi, disparou nove flechas contra os nove sóis (que eram na verdade nove pássaros de fogo), castigou o demônio das águas, aprisionou e matou uma infinitude de animais e aves selvagens. Cumprindo tais ordens, o mesmo trouxe grandes benfeitorias aos seres humanos conquistando o respeito e a estima de todos. O herói era um incansável viajante, percorreu inúmeras regiões ajudando as populações e tendo sempre a hospitalidade do povo por onde passava.
Certo dia, após uma longa caçada, o herói atravessava um riacho no caminho de volta para casa quando derrepente encontrou uma jovem tomando água do riacho com auxílio de um bambu oco. Ele se aproximou da jovem e pediu se ela poderia lhe emprestar o bambu para saciar sua sede. Ao notar as flechas brancas e o arco vermelho a moça logo percebeu que se tratava do grande herói da humanidade, em forma de gratidão ela entregou imediatamente o instrumento. Para retribuir o gesto da moça, Hou Yi escolheu a mais bela pele de raposa prateada que havia acabado de caçar e presenteou a moça. Após conversarem, o herói descobriu que o nome da moça era Chang E, e que seus pais haviam sido assassinados pelos animais selvagens que habitavam a floresta, por isso ela vestia uma blusa e uma saia branca em respeito ao seu eterno pesar pela morte de ambos.
Comovido com o trágico passado da jovem, Hou Yi tentou consolá-la, entretanto, este gesto fez com que a moça se apaixonasse pelo herói, tempos depois eles se casaram formando assim um matrimônio sólido, dedicado e respeitador. A partir disso, Hou Yi e Chang E formaram um casal inseparável, sempre viajando e caçando juntos, se tornaram tão unidos que o herói não acatou a ordem do imperador celestial para retornar ao céu.
Quando o imperador celestial recebeu a noticia que Hou Yi havia se casado com uma mortal e constituído família na terra, e não queria voltar ao céu, ficou furioso e o demitiu de todas as funções, o imperador estava tão furioso que determinou que o herói jamais pudesse subir ao céu. Porém, Hou Yi não se arrependeu de nada, ele era mais feliz na terra do que nos céus, uma vez que aqui ele tinha uma bela e bondosa mulher, viva entre magníficas montanhas, os impetuosos e furiosos rios, as mais imponentes arvores e os honestos homens.
Contudo, o herói sabia que os humanos tinham uma vida limitada, poderiam viver de 60 á 80 anos, no máximo 100, e que cedo ou tarde acabam por morrer.
Um dia, Hou Yi disse a Chang E:
– Quando eu vivia no reino celestial ouvi dizer que na cordilheira Kunlun, no longínquo oeste, a mãe imperatriz tem uma parceira de que cura tudo, até mesmo a morte. Acho que a melhor alternativa será ir a estás terra e encontrar tal medicamento para que assim possamos viver eternamente!
– Quando eu vivia no reino celestial ouvi dizer que na cordilheira Kunlun, no longínquo oeste, a mãe imperatriz tem uma parceira de que cura tudo, até mesmo a morte. Acho que a melhor alternativa será ir a estás terra e encontrar tal medicamento para que assim possamos viver eternamente!
Ao escutar o marido, Chang E ficou eufórica. Arrumou cuidadosamente a bagagem do marido, e colocou tudo que seria necessário para tal empreitada e lhe disse de forma insistente que prestasse muita atenção ao caminho e que regressasse ao lar o mais cedo possível. Era a primeira vez depois do casamento que se separavam e Chang E não podia deixar de sentir uma dor e tristeza profunda pela partida do amado, o único conforto era possibilidade de vida eterna ao lado do seu amado, podendo assim escapar da ameaça constante do deus da morte. Com sua aljava abarrotada de flechas e o arco em punho, Hou Yi montou seu cavalo e partiu rumo ao oeste.
A região onde residia a mãe imperatriz no longínquo oeste era de difícil acesso, para poder se chegar lá era necessário atravessar altas montanhas, florestas que se perdiam de vista e desertos despovoados sem fim onde, por vezes se erguiam furiosos vendavais. Mas para, além disso, próximo a montanha de Kunlin encontrava-se as duas grandes barreiras, que eram os dois obstáculos mais difíceis de serem transpassados; o rio das águas afogadoras e a montanha das chamas ardentes. A água desse rio era tão leve e vaporosa, que nem mesmo a pena de um pato conseguia flutuar, o que o tornava impossível de se navegar. Quanto a montanha, encontrava-se constantemente envolvida por um mar de fogo e uma espessa fumaça que ameaçava fulminar qualquer um que se aproximasse dela. Quando finalmente Hou Yi chegou às margens do rio das águas afogadoras, como ele seria capaz de atravessar este sedento rio sendo que era impossível nadar ou flutuar em suas águas? De repente ele se lembrou de ter visto em uma serrania quando andava procurando uma arvore rara cuja madeira era dura como aço e leve como uma pena. Ele havia mesmo apanhado umas ramagens e atirado-as em um lago próximo, as quais, como se fossem sustentadas por algum gás, levitavam acima das águas ao invés de flutuarem. Hou Yi pensou que se usasse tal madeira poderia certamente atravessar o rio e assim, inspirado por tal ideia cavalgou em direção ao sul em busca dessa madeira, quando a encontrou cortou um tronco fazendo com este uma canoa. Quando regressou ao rio das águas afogadoras empurrou a embarcação sobre as águas, e como o esperado, esta nem tocou a superfície, impelida pela brisa a canoa começou a deslizar sobre a água ruma a margem oposta, e não obstante, a grande largura do rio contava com 50 quilômetros, a embarcação os transportou de um ponto ao outro em um abrir e fechar de olhos.
Pouco depois de ter passado pelas águas mortais do rio são e salvo, Hou Yi chegou aos arredores da montanha de chamas ardentes, onde apesar de suas labaredas infernais chegarem as nuvens o herói não teve receio, pois estava bem preparado para enfrentá-las. Tempos atrás, o herói havia matado a besta Xiongshui capaz de cuspir fogo e vomitar águas, ele guardou a pele dele que era tão espessa que era impossível água e fogo atravessá-la. O herói sempre a carregava consigo, caso um dia fosse necessário o uso, dado as circunstancias o herói não hesitou em usá-la, confeccionando com tal material duas armaduras, uma para si e outra para seu cavalo.
Dessa maneira, e devido a sua inteligência e coragem, Hou Yi conseguiu vencer as duas maiores dificuldades da sua viagem em busca do remédio da imortalidade, acabando por, finalmente, chegar ao sopé da cordilheira Kunlun onde morava a mãe-imperatriz do oeste.
A mãe-imperatriz do oeste morava nos píncaros da montanha de Jade Límpido, no centro da cordilheira Kunlun. Quando Hou Yi chegou às portas do palácio já o mensageiro imperial – a ave Qing Niao – tinha informado a imperatriz da sua chegada. Esta, sabendo que o visitante tinha anteriormente sido um deus, que depois de ter sido anunciado ao mundo para aniquilar os Sóis e os animais selvagens em favor da população, se estabelecera ali espalhando bondade, recebeu-o com muita cortesia e gentileza. Conhecendo também a finalidade da sua vinda, a mãe-imperatriz do oeste, querendo satisfazer-lhe os seus ensejos com a maior das magnanimidades, ordenou a Ave de Três Pernas – guardiã da panaceia – que trouxesse no bico a preciosa cabala com o miraculoso medicamento, preparado a base dos pêssegos da arvore da Imortalidade, que só dava flores e frutos a cada três mil anos.
– Toma, isto e tudo o que me resta – disse a imperatriz, passando-lhe a cabala. – Embora seja pouco, e o suficiente para ambos. Se ingerir a metade cada um, vocês viverão eternamente, mas, cuidado, se um de vocês tomar tudo transformar-se-á em um ser divino e voara para o céu sem jamais poder voltar a terra.
– E para que ambos possamos viver para sempre juntos que eu resolvi vir cá buscar o elixir. A mim não interessa voltar de novo a ser divino – disse o herói fazendo, em agradecimento da magnânima dadiva, uma profunda reverencia.
No momento da despedida de Hou Yi, a mãe-imperatriz do oeste mandou a Ave de Três Pernas buscar uma porção da tenra e perfumada erva Yao, que crescia nas margens do Lago de jade, entregando-a depois ao herói para que este a pudesse ofertar a Chang E. Tratava-se de uma erva tão preciosa quão misteriosa que, conforme se dizia, era originaria da metamorfose de Yao Ji, uma das filhas do deus do Sol, Yandi. Yao Ji era uma bonita e delicada jovem. Aos 17 anos de idade tinha-se apaixonado por Zhi Songzi, um subordinado do deus da Agricultura. Ao principio, estavam ambos muito apaixonados um pelo outro, mas, depois o rapaz partiu para o sul e traindo o amor da sua companheira nunca mais voltou. Esta, ansiosa por o encontrar resolveu procura-lo por toda parte até que, chegada ao centro da cordilheira Kunlun ao saber que o seu noivo tinha casado com uma deusa, ali morreu de dor e de tristeza.
Segundo constava, Yao Ji, a bela e desventurada jovem tinha-se então transformado na preciosa erva Yao que crescia nas margens do Lago de Jade. Em breve a erva tinha florescido espalhando-se rapidamente e proliferado não só ao longo das margens do rio, mas também em todas as encostas da montanha central. Dizia-se que, independentemente das estações do ano, ou de ser noite ou madrugada, as folhas desta erva estavam sempre cobertas de um fresquíssimo orvalho, que não era senão as lagrimas inesgotáveis da desditosa jovem. A erva Yao tinha uma característica especial. Qualquer que fosse a mulher que cheirasse o seu perfume, tornar-se-ia carinhosa de trato e extremamente bela de corpo e feições – e por isso lhe tinham também dado o nome de “erva encantadora”.
Agora, em posse do elixir da longevidade, Hou Yi retomou rapidamente o caminho de regresso. Já se tinham passado mais de seis meses que ele tinha deixado o lar. Ambos ficaram felicíssimos de estarem de novo juntos e Hou Yi contou a Chang E todas as peripécias da sua viagem, dando-lhe no fim o medicamento.
– Aqui esta o elixir que eu adquiri depois de tantos esforços. A mãe-imperatriz do oeste disse que se ambos tomarmos cada um metade dele, poderemos viver eternamente, mas, se uma pessoa o tomasse por inteiro subiria ao céu para nunca mais voltar. Por favor, guarde bem o medicamento, ate escolhermos um dia auspicioso para ambos o tomarmos.
Rejubilante, Chang E recebeu o elixir da imortalidade das mãos de Hou Yi e guardou-o cuidadosamente. Em seguida, o herói entregou-lhe a erva Yao e disse-lhe:
– Isto e uma erva preciosa que a mãe-imperatriz do oeste mandou especialmente colher para te oferecer.
Cheia de contentamento Chang E admirou-a detalhadamente, exclamando depois de surpresa:
– Que extraordinária erva! Nunca vi nada de tão belo!
E ao mesmo tempo que falou, aproximou inadvertidamente a erva do seu nariz inspirando o seu doce perfume. De fato, o cheiro da erva provou o seu efeito, porque ela imediatamente se tornou ainda mais bela que nunca.
Sendo um excelente arqueiro, a fama de Hou Yi tinha-se espalhado até os quatro cantos do mundo, tendo vindo muitos jovens procura-lo, com intuito de aprenderem com ele a arte de que era mestre. O zeloso herói tinha lhes ensinado conscientemente os predicamentos do que sabia, e como de um bom professor saem sempre bons alunos, muitos dos alunos de Hou Yi vieram a tornar-se famosos arqueiros.
Feng Meng, considerado o melhor de todos os discípulos de Hou Yi, era, no entanto, orgulhoso, invejoso e perverso, e todos os dias ansiava que o seu mestre morresse o mais cedo possível, pois cobiçava vir a ser considerado como o mais exímio arqueiro de todo o mundo.
Contudo, ele sabia que o mestre tinha obtido da mã-imperatriz do oeste um elixir da imortalidade que tomava irrealizável o seu sonho e no seu coração ardia constantemente o fogo da inveja. Um dia, resolveu-se, portanto, a tecer uma intriga e aproveitando-se da ocasião do herói ter ido a casa, entrou furtivamente na sua casa e apontando uma flecha ao peito de Chang E disse-lhe perversamente:
– Dá-me depressa o elixir da imortalidade! Depressa! Depressa! Depressa! Caso contrario, acabo-te com a vida de um só golpe!
Surpreendida pelo inesperado acontecimento ela perguntou-lhe:
– Mas você não é um amigo e discípulo de Hou Yi? Por que razão…
– Desde ha muito tempo já não o considero como meu mestre. Enquanto ele estiver vivo eu nunca poderei gozar da fama de ser o melhor do mundo e por isso odeio-o tanto e lhe desejo uma morte breve – disse Feng Meng rangendo os dentes.
Chang E permaneceu calada e chorou de raiva.
– Dá-me o elixir, depressa! – berrou o discípulo brandindo o ameaçador arco e flecha contra ela. Entretanto, Chang E pensava que nunca poderia entregar a esta ignóbil criatura a panaceia que Hou Yi tinha adquirido apos ter desafiado tantas dificuldades e perigos. Vendo-se ameaçada tirou o medicamento da sua algibeira, mas, quando o patife estendeu a mão com a intenção de se apoderar da preciosa cabala, ela meteu-a na boca e engoliu o seu conteúdo o mais rapidamente que foi possível e correu em direção à porta.
Mal Chang E tinha passado o limiar da porta já, começou a sentir-se tão leve que, dir-se-ia, diáfanas nuvens a impeliam para o céu. Gradualmente Chang E elevou-se airosamente para as alturas; mas para onde iria ela? Pensando que Hou Yi ficaria agora, para sempre um prisioneiro do mundo e, repleta saudades dele resolveu-se a ficar na Lua, por ser local mais vizinho da terra. A sua chegada ao palácio de Guanghan, na Lua, fez rebrilhar este astro ainda mais suave e claramente.
De regresso da casa, Hou Yi ficou tão triste ao saber do que tinha acontecido que, com a cabeça levantada e os olhos imóveis, não parava de fitar a longínqua Lua, pensando na sua amada que nunca mais poderia ver, enquanto que abundantes lagrimas lhe escorriam pelas faces sem cessar.
Ao refletir sobre o ingrato e desprezível ato de Feng Meng, o herói sentiu-se invadido por um misto de indignação e raiva e, pegando no seu arco e flechas, saiu de casa a sua procura.
Entretanto, o ardiloso Feng Meng tinha-se escondido no bosque sobranceiro a casa do seu mestre e ali lhe preparava uma emboscada. Assim, quando Hou Yi ao sair da casa, passou por aquelas paragens o malandro que nem um fantasma, saiu do seu esconderijo e com um grosso cacete, deu uma forte pancada na nuca do seu mestre deixando-o prostrado e morto.
O golpe tinha sido tão rápido que o herói nem teve tempo para se aperceber ou se defender do que lhe estava acontecendo.
A morte de Hou Yi despertou o pesar, o pranto e a pena de todos os homens. Tratava-se, realmente, de uma tragédia!
Quando os outros discípulos souberam do crime de Feng Meng, perseguiram-no, cercaram-no e prenderam-no, depois amarraram-no a uma grande arvore e mataram-no, cada um atravessando-o com uma flecha. No fim das contas ele não veio a ser considerado o arqueiro de primeira classe que tanto ansiava vir a ser, mas teve a triste sorte de um conspirador, em abono da verdade, um homem com demasiada ambição nunca tem bom fim!
Após a morte de Hou Yi, em comemoração dos seus méritos indelegáveis em favor do povo, todas as famílias penduraram a sua imagem na sala principal de suas casas e passaram a venera-lo como um deus tutelar e a invocar o seu nome como modelo de virtude e altruísmo. Enquanto em vida, Hou Yi tinha, efetivamente, eliminado múltiplos flagelos em beneficio do povo e, após a sua morte, propagou-se a ideia de que o seu espirito continuava a zelar pelo bem-estar e sobrevivência dos povos. Sempre que havia secas ou inundações, dizia-se que ele lutava contra o demônio das Águas ou o fantasma da Seca, vindo a ser considerado como uma divindade protetora dos interesses dos homens.
Consoante a Chang E, ela continuou a habitar, tal como uma fada celestial, o luxuoso palácio de Guanghan feito de jade e esmeraldas, mas afastada da terra e da companhia de Hou Yi, a sua eternidade tornou-se um mar de amargura, solidão e sofrimento…
Texto: Aelxandro D’Arc (Papus)
Fonte: Livro, Mitologia Chinesa – Ed, Princípio
Fonte: Livro, Mitologia Chinesa – Ed, Princípio
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